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O Papel Cultural do Cristianismo no Ocidente

(Originalmente escrito em agosto de 2016)


Conforme a ciência avança e resolve novas questões sobre a natureza cujas respostas nos eram dadas, no passado, unicamente pela Igreja, a religião começa a perder aos poucos sua relevância cultural entre a sociedade, que não vê mais nela a capacidade de concorrer à altura com as inovações trazidas pela ciência. A importância cultural do cristianismo no Ocidente, entretanto, não se relaciona somente com avanços de cunho científico, mas sim, e mais importante, de avanços sociais que transformaram a Europa, da civilização mais bárbara, na mais inovadora e justa. Se o Ocidente se desenvolveu mais do que outras civilizações, um dos principais motivos está, sem dúvida, ligado à presença da religião cristã na Europa.


A história nos ajuda a entender as transformações pelas quais a civilização ocidental passou ao longo do tempo. Nos seus 2 mil anos de existência na Europa, o cristianismo foi responsável, em grande parte, pelo desenvolvimento da educação, da medicina, além de prezar valores que a ela são tão caros, como a honestidade e justiça. Certamente o cristianismo não é perfeito, e muito do que foi feito no passado, tanto para bem quanto para mal, pode ser associado à religião, uma vez que ela afeta a vida cultural de uma sociedade. Entretanto, por causa de parte de seu passado que dificilmente exemplifica todo o seu legado, a associação do cristianismo a crimes e mortes se tornou muito mais comum do que a associação aos valores culturais cultivados ao longo de sua existência. Não é incomum ver hoje uma crença de que a ciência e a religião são áreas opostas de estudo, em que a primeira representa o avanço, e a segunda o retrocesso. Afinal de contas, foi da ciência que vieram as curas medicinais e o desenvolvimento tecnológico, enquanto o cristianismo foi responsável pela tentativa de minar esses avanços com censura e julgamentos a quem propunha qualquer ideia que divergia da crença cristã. A bem da verdade, isso não só representa uma análise rasa da história, como também injusta e incorreta. Injustiça e crimes não são feitos exclusivamente em nome da religião. A ciência e o ateísmo, com a crença de que, se o homem pode entender a natureza, também é capaz de controlá-la, gerou, como nunca, uma busca incansável pelo poder, resultando, por exemplo, no desenvolvimento tecnológico em maquinários de guerra que levaram os Estados, no século passado, aos maiores assassinatos em massa que a história já viu.


O século XX sozinho contabiliza mais de 100 milhões de mortes por ditaduras implacáveis com aqueles que não aceitavam, ou simplesmente eram considerados os causadores de problemas fictícios que afligiam seus governos utópicos. Tiranos como Adolf Hitler, Mao Tsé-tung e Joseph Stalin não tardaram a fazer execuções em massa em nome de uma ideologia. O que eles tinham em comum? Eram todos ateus. Contrariando a ideia de que o ateísmo foi o culpado por tais crimes, Richard Dawkins escreveu em seu livro "Deus, um Delírio" que sim, é verdade que ateístas cometeram crimes, mas ao contrário dos cristãos, que cometeram crimes em nome da religião, os ateístas não o fizeram em nome do ateísmo.


Dawkins possuí um argumento valido, entretanto, é inegável que o próprio pai do socialismo já atacava a religião, e com um bom motivo. Uma ideologia que prega o poder e influência do Estado acima de todas as coisas, não pode aceitar que a família – principal base de sustentação da religião – seja considerada mais importante que o controle centralizador nas mãos de um determinado governo. É graças à ideologia pregada por Marx que diversos países do mundo passaram por revoluções socialistas. O alemão já afirmava que a "religião é o ópio do povo" e que seria, portanto, necessário criar um novo homem, uma nova sociedade e uma nova utopia, livre da religião e da moral tradicional. Obviamente, não seria justo usar os argumentos apresentados acima para ignorar os crimes cometidos pelo cristianismo no passado somente porque estes, realizados por ateístas no presente, são mais graves. Entretanto, é necessário colocar tudo em uma balança e ponderar acerca de quais crimes foram mais graves, levando em conta, também, o contexto histórico. A inquisição espanhola, por exemplo, período em que a perseguição sobre quem discordava dos valores cristãos se tornou prática tão comum que o próprio Papa precisou pedir aos inquisidores que contivessem o banho de sangue, é visto atualmente como uma das épocas em que a Igreja se utilizou, de forma mais contundente, de seus poderes para perseguir quem era considerado herege. O historiador Henry Kamen, umas das maiores autoridades no assunto, no entanto, avalia que durante os 350 anos de inquisição, houveram aproximadamente 2 mil pessoas mortas em nome da religião. Isso equivale a cerca de 5 mortes por ano.


Durante o período, os judeus e árabes foram os principais perseguidos. As punições variavam entre expulsão dos hereges, que se mudavam principalmente para Portugal e Itália, ou então na obrigação de se converterem ao cristianismo. A execução pública, prática comum durante o século XV, se tornou, ao longo do século XVI em diante, uma punição cada vez mais rara. Dentre os crimes cometidos e passíveis de julgamento pela inquisição, estavam o ato de bruxaria, blasfêmia, bigamia, sodomia e estupro, embora a própria inquisição não levasse muito a sério os dois primeiros tipos de denúncia. Mesmo criticar os valores cristãos não resultava em punições muito graves.


Se esses crimes cometidos em nome da religião podem manchar a história do cristianismo, por outro lado é inimaginável encontrar nos dias de hoje, cristãos decididos a enforcar hereges em praças públicas enquanto são aplaudidos por outros fanáticos. Enquanto os julgamentos e assassinatos religiosos datam de quinhentos a mil anos atrás - como é o caso das cruzadas que, de tão antigas, se tornaram difíceis de estudar - os piores crimes cometidos por ateus foram realizados ainda no século passado e vivem até hoje nas memórias de quem sobreviveu em tempos de ditaduras.



O PAPEL DO CRISTIANISMO EM NOSSA CULTURA:



Se os julgamentos e crimes cometidos em nome do cristianismo são passíveis de criticas, a religião tem um outro lado que deve ser elogiado e resgatado na nossa cultura, já que seus valores tem se tornado cada vez mais mal vistos por parte da população ocidental. O indiano Dinesh D'Sousa, que hoje reside nos EUA e trabalha como comentarista político, além de ser autor de livros como "What's So Great About Christianity" e "Life After Death" - nenhum deles traduzido para o português - pode ser considerado um dos maiores especialistas da importância cultural do cristianismo em nossa sociedade.


Em seus trabalhos, D'Sousa apresenta visões interessantes sobre a religião. Ele defende que valores defendidos por ateístas, como a valorização do indivíduo como ser livre, a independência da ciência para criar suas próprias teorias, virtudes sociais como o respeito e a dignidade das mulheres, abolição da escravatura e a celebração da compaixão como um valor humano, de um modo geral, não são valores defendidos somente por quem acredita na ciência, mas sim e primeiramente, pelos cristãos. Essas ideias, na verdade, só existem hoje em decorrência de um trabalho duro e ativo da religião no Ocidente. Na declaração de independência americana, Thomas Jefferson afirma que "(…) todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade". As palavras de Jefferson haviam sido, e ainda são, importantes como peça fundamental para um sistema político recém estabelecido, mas também como forma de entender o papel da religião cristã naqueles países que a abraçaram. Vida, liberdade e busca da felicidade não são valores ou direitos dados por um governo a seus cidadãos, e sim direitos naturalmente adquiridos, uma vez que vêm de um plano acima de nós mesmos e que não podem ser, portanto, negados a nenhum homem, visto que ele é uma criatura de deus.


Voltando à história, não era raro ver atos que seriam considerados extremamente desumanos nos dias de hoje, sendo cometidos pelas civilizações clássicas da Grécia e Roma Antiga, que viveram em um período onde o cristianismo não havia, ainda, chegado à Europa. Na verdade, tais atos eram muito comuns. Em Esparta era normal tirar a vida de crianças doentes e fisicamente deficientes, deixando sobreviver somente aquelas que não possuíam nenhuma anormalidade. Tal ato era cometido pra manter crianças fortes o suficientes para se tornarem grandes guerreiros. De um modo geral, não parece haver nas civilizações clássicas, a compaixão como um valor de grande importância, aponta D'Sousa.


O que conhecemos hoje como Ocidente deriva de dois pilares culturais enraizados e desenvolvidos ao longo do tempo na civilização europeia. A construção vem principalmente de Atenas e Jerusalém. A primeira responsável pela razão clássica, o desenvolvimento da filosofia e o início da democracia e, do oriente, surgiram os valores judaico-cristãos juntamente com o desenvolvimento da Cidade Santa. Entretanto é somente durante a queda do império romano que o cristianismo chega massivamente ao ocidente, moldando a cultura que se tornou responsável pelos maiores avanços sociais, religiosos e, até mesmo, científicos.



A ESCRAVIDÃO, DIREITOS INDIVIDUAIS E O CRISTIANISMO:



Desde as primeiras civilizações nascidas no oriente, a escravidão é uma prática comum, embora diferente em cada território e diferente na visão de cada povo. D'Sousa aponta que por muitos séculos, "a escravidão não precisava de defensores, pois não havia críticos". Em territórios como a Grécia Antiga e Egito, os escravos eram aqueles que haviam sido conquistados em guerras e eram considerados mais fracos e inferiores. Alguns possuíam direitos, embora não fossem livres. Do período clássico até a criação dos atos abolicionistas do século XIX, inúmeras tentativas de acabar com o comércio de escravos e trabalho forçado de pessoas passaram pela Igreja Católica.


Talvez uma das primeiras tentativas claras de tentar conter o comércio de escravos foi na República de Veneza no ano de 960 d.C, através de uma lei aceita pela Assembleia Popular da cidade-Estado italiana. Embora não tenha havido participação direta da Igreja Católica na decisão, o cristianismo já era a religião majoritária da população europeia cuja cultura era remodelada, após a queda do império romano, em torno das crenças cristãs.


Entre os séculos IX e XX, a Europa passou por diversos processos para conter e dificultar a comercialização de escravos, alguns países largando na frente, outros mais atrasados. Em alguns casos, a Igreja participava diretamente das decisões tomadas contra a escravidão, embora muitas das leis fossem formalizadas pelos Estados europeus. Uma coisa é certa, a religião tinha sempre uma participação, mesmo que indireta, já que era a principal entidade cultural europeia.


Já na Idade Moderna, os cristãos evangélicos foram responsáveis por um segundo movimento de que todas as pessoas são criadas de forma igual sob os olhos de Deus. A ideia de que nenhum homem tem o direito de governar outro homem sem consentimento, não só surgiu do cristianismo, como se tornou uma das bases da democracia moderna, de que somos livres enquanto não invadimos a liberdade dos outros, e de que ninguém, além de nós mesmos, pode decidir e interferir em nossas próprias vidas. Curiosamente, os governos mais autoritários deste e do século passado, são também os mais desapegados aos valores cristãos.



CONCLUSÃO:



Entre o período renascentista e a Idade Moderna, a cultura ocidental foi bombardeada por uma série de novas teorias científicas, revelando alguns dos principais nomes de áreas como astrologia, botânica, química e física. Foi entre os anos de 1500 e 1800 que grandes pensadores como Francis Bacon, Galileo Galilei, Isaac Newton e Lavoisier - sem contar inúmeros outros importantes nomes da ciência - foram responsáveis por diversas teorias que levaram a Europa a um enorme desenvolvimento científico e social.


Se por um lado a Igreja tenha tentado silenciar alguns destes cientistas - Galileo sendo talvez o caso mais notável - por outro, todos eles eram cristãos devotos. Newton, por exemplo, escreveu que "a gravidade explica a movimentação dos planetas, mas não explica quem colocou os planetas em movimento". Embora haja a crença de que a Igreja se empenhava em calar e censurar aqueles que criavam novas teorias científicas, é justamente nas civilizações ocidentais que houveram os mais grandiosos avanços tecnológicos e sociais. Em áreas como a enfermagem, a participação da Igreja foi fundamental, já que era a principal entidade a tratar de doentes e feridos. Não por acaso, a Igreja é, até hoje, umas das principais fornecedoras do sistema de saúde privado. A educação também foi altamente incentivada pelos cristãos, cujos monastérios e conventos se tornaram, após a queda do império romano, os principais responsáveis pelo ensino. Não sem motivo, é na Europa que ocorrem os maiores avanços em áreas onde a educação é fundamental, ao passo que em outros países a religião de fato criou obstáculos muitas vezes intransponíveis ao conhecimento. Países de maioria muçulmana são um bom exemplo, já que uma vez grandes detentores do conhecimento, perderam o posto para a Europa que, ao contrário dos países do Oriente-Médio, não impediam o acesso à educação não religiosa. Ainda no século XI surgem as primeiras universidades europeias, como a de Bologna e Oxford, as quais absorveram a influência exercida pela igreja, recebendo membros do clero entre seus alunos e criando as condições para o maior desenvolvimento da sociedade europeia.



Dominus Illuminatio Mea – “The Lord Is My Light”



É difícil analisar o papel da Igreja como um todo, considerando que em quase 2 mil anos de existência do cristianismo na Europa, houveram muitas falhas e muitos benefícios por ela trazidos. Porém, se a Igreja estava tão determinada em censurar quem pensava e propunha novas ideias e novas teorias diferentes da crença cristã, então ela deve ter falhado miseravelmente em sua censura, pois foi na Europa que surgiram os principais cientistas e filósofos do mundo, responsáveis pelos avanços que temos hoje.


Ao observar atentamente o papel da religião na história e no desenvolvimento da sociedade europeia, fica claro que ela e a ciência não são antagônicos. Ambos são responsáveis pelo desenvolvimento científico

e cultural do Ocidente. Porém, por mais esclarecedora e inovadora que a ciência possa ser, algumas das perguntas mais antigas formuladas pelos homens ainda permanecem no escuro. Questões como "de onde viemos?", "porque estamos aqui?" e "qual é o nosso propósito?" não encontraram nada além de silêncio por parte da ciência, fazendo com que as pessoas ainda recorram à religião para obter estas respostas.


Talvez a crença mais popular entre os ateus seja de que somos apenas um amontoado de células que ao longo do tempo evoluiu no ser que somos hoje e que, ao morrermos, simplesmente voltaremos ao pó de que viemos. Mesmo que houvesse alguma razão nessa ideia, ela não só continua deixando as perguntas anteriores em aberto, como nos faz abrir mais uma série de questionamentos. Afinal de contas, se a proposição anterior está correta, qual o propósito em sermos pessoas justas e honestas? Porque deveriamos ser bondosos com o próximo? E mais importante, porque deixar um legado ao mundo?


Talvez esteja nessas questões a chave para entender a importância da religião na sociedade. Queira você acreditar ou não nas respostas dadas pelo cristianismo às perguntas anteriores, uma coisa é certa: para milhões de pessoas, ela serviu e ainda serve como guia de valores e como um propósito a ser seguido. Apesar de todos os avanços nas áreas científicas, algo ficou pra traz, faltou desenvolver em nós um senso de humanidade, algo que somente a religião nos permitiu compreender, afinal de contas, é somente através do respeito aos valores que tanto admiramos que podemos almejar um lugar no paraíso ou uma redenção. Não importa como queira chamar, e sim observar que vêm do cristianismo, a cultura que nos fez avançar tanto em questões sociais que nos são hoje, tão queridas e tão importantes.

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